Carme Artigas: Tentativa da desinformação é fazer não confiar em nada
Lisboa, 19 mai 2024 (Lusa) - A copresidente do Conselho Consultivo de Alto Nível da ONU para a Inteligência Artificial Carme Artigas considera, em entrevista à Lusa, que tentativa de desinformação é fazer com que as pessoas não acreditem em nada.Carme Artigas, que foi secretária de Estado da Digitalização e da inteligência artificial (IA) em Espanha, foi uma das oradoras do 33.º Congresso da APDC, que decorreu em Lisboa.
A desinformação, diz, não chegou com a IA generativa, "nem mesmo com a inteligência artificial".
As tentativas de "minar a reputação de alguém sempre existiram, contudo a escala do impacto e a capacidade de alcance" agora é que "é grande e com a IA generativa o que acontece é que é difícil distinguir o que é verdade".
"Digo sempre que o risco existencial mais importante para a humanidade [...] é ficarmos loucos porque não conseguimos acreditar no que vemos" e "essa é a verdadeira questão: confiança. Há uma falta de confiança", sublinha Carme Artigas.
E nesse sentido, a "tentativa da desinformação não é vender uma mentira em que acredite, isso não é verdade", mas sim que "não se confie em nada".
Portanto, "a tentativa da desinformação é minar as infraestruturas existentes e os valores democráticos da sociedade onde vivemos hoje", reforça.
As redes sociais têm de colocar um rótulo quando algo é gerado por IA, de acordo com a lei, o que é "algo muito importante", já que fica transparente para todos.
"Acho que é muito importante, mais do que nunca, o papel dos media [...], acho que a responsabilidade dos media sérios não é apenas tratar das formas de verificação [dos factos], é também não amplificar o discurso de ódio ou de desinformação por causa do 'clickbait'", defende.
Reconhece que os media enfrentam um grande desafio, já que o setor não é rentável. Isto porque "perderam a batalha da atenção a favor das plataformas, perderam a batalha" das receitas publicitárias "a favor da Google ads", o que é um risco para o setor.
"Precisamos de media rentáveis para que possam continuar independentes" e, nesse sentido, o Media Act - lei europeia dos media - "é muito importante".
"Estes são os desafios de hoje, pelo menos estamos conscientes deles", prossegue, dizendo estar "mais confiante hoje do que há quatro anos".
Tecnologia está a mudar a natureza e equilíbrio do poder
Carme Artigas admite também, na entrevista à Lusa, que a tecnologia está a mudar a natureza e equilíbrio do poder.
Questionada se o mundo corre o risco de ficar dividido face à 'guerra' tecnológica que se assiste, Carme Artigas começa por dizer que o "desafio não é apenas ao nível comercial":
"A tecnologia está mudar a natureza do poder e está a mudar o equilíbrio de poder entre países que têm material específico, capacidades específicas e países que não têm, mas de intervenientes não governamentais, como as 'big tech', que têm ainda mais poder."
Nesse sentido, "este é o desafio" e a tecnologia e a geopolítica estão "muito bem integradas", continua a responsável.
A competição por talento, por exemplo, é uma realidade, "e podemos lutar por isso se competirmos".
Contudo, "não podemos competir por segurança nem pelos Direitos Humanos", salienta a copresidente do Conselho Consultivo de Alto Nível da ONU para a Inteligência Artificial.
E sobre isso é preciso conversar, defende.
"Podemos competir pela quota de mercado, mas não podemos competir sobre os Direitos Humanos" porque "não se pode competir contra algo que é contra a sociedade" e "este é o ponto".
Sobre a falta de diversidade que existe por trás de quem desenha a IA, Carme Artigas refere que é algo que já existia com a 'machine learning' ou 'deep learning, que tem a ver com a justeza na inteligência artificial.
Em 2022, quando a IA generativa veio à tona, voltou-se a discutir de forma mais intensa os riscos associados, como a justiça e os riscos de segurança, como também as questões de género (mais homens a trabalhar nos algortimos que mulheres), mas também geográficas que atravessa "diferentes setores sociais".
A IA também traz oportunidades para a inclusão como o acesso à saúde pública, educação, entre outros.
Carme Artigas sublinha que há uma parte do mundo "que não tem acesso à Internet", um problema patente no grupo de países do Sul Global.
"As Nações Unidas são a plataforma certa pra falar de multilaterlismo" e dar voz ao Sul Global, já que "não têm voz em qualquer outro fórum criado à volta da IA", salienta.
Já sobre a regulação europeia de IA, Carme Artigas considera que isso abriu caminho para se começar a falar de regulamentos.
Porque até agora era deixar "ir com a corrente, deixar a indústria resolver os problemas que tinham criado". E, quando ninguém estava a olhar para isso, a União Europeia estava a pôr o tema em agenda, diz, referindo-se a junho de 2021.
Agora "todos estão preocupados com a sua regulação", sublinha.
"Na Europa, além da regulamentação do ponto de vista técnico e do risco, introduzimos o conceito que é muito poderoso: estamos também preocupados com o risco futuro da IA em termos de saúde e segurança e, como atribuímos o mesmo peso aos direitos fundamentais, isto é algo que queremos refletir no nível de reconhecimento", salienta a ex-governante espanhola.
"Precisamos chegar a uma base internacional onde coisas básicas como Direitos Humanos ou direito internacional. Não podemos deixar a IA desenvolver colocando em risco esses acordos fundamentais", alerta.
Proibir uso da IA para manipular vontade humana
Na lei europeia "demos especial atenção aos direitos fundamentais", reforça.
"Para mim, o valor mais importante da IA é o Capítulo 5", que diz respeito às proibições.
Pela primeira vez, "estamos a dizer ao mundo, embora isso seja tecnicamente viável, não queremos que isso aconteça e isso significa proibições" como a atribuir 'social scoring' [sistema de pontuação] que exise na Ásia.
Outra das proibições é o uso da IA para manipular a vontade humana, que também pode ter uma relação com desinformação.
"Não queremos que a IA use dados biométricos para discriminar as pessoas", aponta.
No fundo, a lei europeia sobre IA "não é apenas uma norma tecnológica ou jurídica, é um padrão moral" e "penso que essa foi a melhor contribuição", conclui.
Alexandra Luís