Desinformação potenciou onda de violência de extrema-direita no Reino Unido
Londres, 08 ago 2024 (Lusa) – A desinformação teve um papel central na violência da extrema-direita no Reino Unido contra imigrantes, nas últimas duas semanas, após a morte de três crianças, em Southport, no Noroeste de Inglaterra.
Investigadores, ouvidos pela imprensa britânica, argumentam que o ressurgimento da violência deve-se, sobretudo, à decisão de permitir o regresso às redes sociais de líderes da extrema-direita, com manobras de desinformação.
O professor da Universidade de Bristol Stephan Lewandowski, especialista em desinformação, o diretor do departamento de política do Instituto para o Diálogo Estratégico (Institute for Strategic Dialogue, ISD), Jacob Davey, e o responsável pela área de investigação da organização Hope Not Hate, Joe Mulhall, coincidem na afirmação de que redes sociais “como a X” estão a alimentar o crescimento do extremismo ao permitirem o acesso das suas “figuras de proa” a uma plataforma para manobrar a violência a seu favor, através da mentira.
Os especialistas foram ouvidos pelo jornal The Guardian, na sequência dos levantamentos de extrema-direita, verificados em várias cidades inglesas e em Belfast, na Irlanda do Norte, nas últimas semanas, após o assassínio de três raparigas, em Southport, no Noroeste de Inglaterra, num ataque a um atelier infantil de dança, em 29 de julho.
O jornal The Independent e a revista The Prospect rastrearam as mensagens originais de apelo à violência, a partir da investigação do professor Marc Owen Jones, de Universidade Hamid bin Khalifa, em Doha, especialista em justiça social, repressão política e autoritarismo digital.
Jacob Davey, do ISD, disse ao jornal The Guardian que o perigo aumenta, conforme movimentos fascistas "tradicionais", como a English Defense League (EDL), deixam de funcionar como organização e se expandem nas redes sociais.
O Reino Unido, como outros países, tem agora “um movimento de extrema-direita muito mais descentralizado”, disse ao The Guardian. “Tem havido figuras conhecidas nos protestos – incluindo alguns neonazis declarados –, mas há também esta rede informal que inclui cidadãos locais preocupados e ‘hooligans’ do futebol”.
“Todas estas pessoas estão ligadas por estas redes ‘online’”, ativadas por figuras “profundamente cínicas, muitas delas fora do país, galvanizadas pela desinformação viral proveniente de fontes desconhecidas e não confiáveis.”
‘Fake news’ sobre imigrante que não o é
Para Joe Mulhall, investigador da Hope Not Hate, trata-se de um movimento “pós-organizacional”, em que líderes de extrema-direita manipulam pessoas, levam-nas “a tomar medidas ‘ad hoc’ ou a divulgar ‘online’ os seus próprios vídeos enganosos e falsos sobre questões que incluem migrantes e redes de aliciamento de crianças”.
O assassinato de três crianças em Southport foi a faísca para a intensificação da violência latente, alimentada por falsas alegações de que o autor do crime era um requerente de asilo chamado “Ali al-Shakati”.
De acordo com a investigação de Marc Owen Jones, “poucas horas depois de um rapaz ter sido detido pelos esfaqueamentos”, e de as autoridades terem garantido que nascera no Reino Unido há 17 anos, “começaram a circular nas redes sociais narrativas falsas identificando-o um imigrante muçulmano”, sob “observação do MI6 [serviços secretos] e dos serviços de saúde mental de Liverpool”.
Nada disto é verdade, escreve o editor da Prospect, Alan Rusbridger, citando a investigação de Marc Owen Jones, que verificou como esta “especulação atingiu rapidamente 27 milhões de reações nas redes sociais”, seguindo publicações do “autoproclamado misógino Andrew Tate”, detido pelas autoridades romenas por tráfico humano, violação e crime organizado, que soma dez milhões de seguidores, e do líder de extrema-direita britânico Tommy Robinson, que soma 800 mil.
“Um dos amplificadores mais proeminentes desta informação falsa”, escreve Alan Rusbridger, “foi uma organização obscura que se auto-intitula Channel3 Now”, que tem na sua origem a difusão de “vídeos de ralis de carros russos”, embora possa apresentar endereços de origem no Paquistão ou nos EUA.
Neste contexto, ao líder do partido de extrema-direita Reform, Nigel Farage, que se distinguiu na campanha pró-Brexit, bastou afirmar que a imprensa e as autoridades “não estavam a dizer a verdade”, questionando por que razão “o incidente não estava a ser tratado como ação terrorista”.
Elon Musk e X responsabilizados
O editor da Prospect, num texto de opinião no jornal The Independent, responsabiliza diretamente Elon Musk por grande parte dos levantamentos, ao ter eliminado controlo de informação falsa e de apoio à violência na X (ex-Twitter), ao repor contas anteriormente bloqueadas, depois de ter adquirido a rede.
O professor Stephan Lewandowsky, da Universidade de Bristol, estende a crítica ao Facebook, “uma máquina de escândalos”: “É um problema grave e pode ser facilmente resolvido modificando os algoritmos para que destaquem a informação com base na qualidade e não na infâmia”.
Por isso, Musk poderá ser convocado para dar explicações ao parlamento britânico, a pedido das deputadas trabalhistas Chi Onwurah e Dawn Butler.
Comunidade portuguesa assustada
Membros da comunidade portuguesa em Londres dizem estar assustados com a conjuntura violenta atual do Reino Unido, devido às manifestações da extrema-direita contra os imigrantes, disse hoje à Lusa o conselheiro das Comunidades Portuguesas Pedro Xavier.
"Sei de alguns relatos de membros da comunidade portuguesa em Londres que dizem estar assustados, apesar de ainda não terem sido afetados diretamente, embora uma das meninas assassinadas [em 30 de julho] tenha origem portuguesa, o que, como é óbvio, consternou as pessoas de uma maneira sem precedentes", declarou à Lusa o conselheiro das Comunidades Portuguesas no Reino Unido.
Pedro Xavier referiu que classificar de "protestos" os eventos realizados pela extrema-direita em todo o Reino Unido, com especial ênfase em Londres, a capital, não é correto, pois "para o serem tinham que ser autorizados pelas autarquias locais e pela polícia, que é um protocolo que faz parte da legislação britânica", o que não aconteceu.
"Infelizmente uma das meninas era portuguesa e nós temos estado em contacto com a família, com os pais, não só eu, mas também o Consulado Geral de Manchester, que era da área de jurisdição da região onde vivem", disse o conselheiro.
Maria Augusta Gonçalves, Nair Cardoso e Nuno Simas