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Fome em Gaza alimenta desinformação nas redes com fotos verdadeiras tomadas como mentiras e vídeo falso partilhado como verdadeiro

epa12256137 Protesters hold a banner showing Palestinian children suffering from severe malnutrition, during a rally calling for an end to the war on Gaza, at Sana'a University, in Sana'a, Yemen, 23 July 2025. Students and professors rallied at Sana'a University in solidarity with the Palestinian people, demanding an end to the war on the Gaza Strip and the resulting famine.  EPA/YAHYA ARHAB

Lisboa, 27 jul 2025 (Lusa Verifica) – A fome na Faixa de Gaza está a gerar desinformação nas redes sociais, com contas pró-Israel a negarem a veracidade de imagens reais e verificáveis e contas pró-palestina (e outras) a ilustrarem a emergência humanitária com imagens não relacionadas.

 

Alegação: imagens da fome em Gaza são do Iémen e criança palestina está tão fraca que já nem chora

Durante a última semana, as redes e os media encheram-se de imagens dramáticas sobre a fome e a desnutrição extrema na Faixa de Gaza, sobretudo com fotos e vídeos de crianças emaciadas e esfomeadas, e pais desesperados e exauridos.
Na quinta-feira, o jornal francês Libération fez capa com a foto de uma criança palestiniana claramente subnutrida (https://archive.is/wx8Pz) e rapidamente foi acusado, na rede social X, de estar a usar uma foto de arquivo de setembro de 2016, alegadamente do Iémen (https://archive.ph/sfFE4), crítica entretanto amplificada por contas da comunidade judaica francesa (https://archive.is/VuIGV).
Essa acusação repetiu-se noutra foto da mesma criança, desta feita ao colo do pai, que chegou a ser considerada uma “mentira repetida acriticamente pelos media e por ‘crentes’” nesta publicação da analista de assuntos internacionais, Helena Ferro Gouveia, no X, onde também alega que a foto é de 2016, no Iémen: https://archive.ph/hZ1Eo.
Na mesma data e no dia seguinte, sexta-feira, jornais como o The Guardian (https://archive.ph/wuglw), o Le Monde (https://archive.ph/REdDK) ou o Correio da Manhã (https://archive.is/EuUww), entre outros, escolheram outra foto impactante para as suas primeira páginas, com uma mãe a segurar uma criança esquelética vestida apenas com o que parece ser uma fralda improvisada com um saco de plástico preto.
Essa imagem já tinha sido partilhada na véspera por vários media, como a BBC (https://archive.is/ZtHxJ) e a CNN (https://archive.is/kvTRR), que afirmaram tratar-se de Muhammad Zakariya Ayyoub al-Matouq, uma criança palestiniana de um ano e meio que pesa apenas seis quilos devido a problemas de saúde e a subnutrição.
No entanto, várias contas nacionais e internacionais em redes sociais como o X também atribuíram a foto ao conflito no Iémen, sem apresentar qualquer prova (exemplos: https://archive.ph/r7UGY, https://archive.ph/mBSy9 e https://archive.ph/A4EVe).
Neste período, circulou também um vídeo que, alegadamente, mostrava um bebé palestiniano demasiado fraco para chorar devido à fome, imagens que obtiveram centenas de milhares de visualizações nas redes sociais (exemplos: https://archive.ph/ds7A4 e https://archive.ph/T5LfS) e que chegaram a ser divulgadas por canais palestinianos.

+++ Factos: as três fotos são reais e de Gaza, mas o vídeo é de uma criança do Paquistão +++
A origem da foto utilizada na capa do Libération já foi esclarecida pela equipa de verificação de factos do jornal, que demonstra tratar-se realmente de uma criança em Gaza: https://archive.is/hvFNS.
Esse facto é facilmente comprovável através de pesquisas reversas que permitem identificar a reportagem que o fotógrafo Omar Al-Qattaa, da agência AFP, fez no campo de refugiados de Al-Shati, em Gaza, a 23 de Julho (https://archive.ph/ifY1T), incluindo aquela imagem de Yazan, de apenas dois anos: https://archive.is/ldINf.
O mesmo tipo de pesquisa reversa também permite constatar que a foto que a comentadora Helena Ferro Gouveia diz ser do Iémen – aparentemente com base numa resposta errada do Grok, o assistente de inteligência artificial do X – é na verdade do pequeno Yazan, de Al-Shati, Gaza, e foi captada uns dias antes por Ahmed Jihad Ibrahim Al-arini, da agência turca Anadolu (https://archive.ph/ocStQ), fotógrafo que também fez uma extensa reportagem com aquela família de Gaza: https://archive.ph/TEX5n.
Este erro do Grok já tinha sido registado pela equipa do Libération e apontado pela utilizadora Ana António que, em várias tentativas infrutíferas, demonstrou à IA do X que estava errada, não só porque existem outras fotos da mesma família de Gaza, mas também porque a alegada origem indicada pelo Grok é claramente de outra criança (ver sequências https://archive.ph/idR0W e https://archive.is/w5Rbl). Curiosamente, houve outro utilizador francês que conseguiu que o Grok assumisse o erro: https://archive.is/k7E8C.
O mesmo fotógrafo da Anadolu é também o autor de outra foto emblemática, a de Muhammad al-Matouq, que também está a ser alvo de desinformação. À semelhança das anteriores, basta uma pesquisa reversa seguida por pesquisas nas páginas da agência ou em bancos de imagens como o Getty Images para chegar à reportagem (https://archive.ph/qAVzA) sobre essa outra família de Gaza destacada nas capas de jornais nacionais e internacionais e cuja história foi contada por diversos media, como a BBC, que explica que a criança já tinha problemas de saúde anteriores à subnutrição: https://archive.ph/vaTnY.
Quanto ao vídeo da criança com convulsões, uma leitura atenta dos comentários de alguns dos tweets permitiu identificar alertas para o facto de o vídeo poder não estar relacionado com Gaza, nomeadamente por surgir numa página dedicada a crianças em tratamento numa Unidade de Cuidados Intensivos Neonatais (UCIN) que parece estar ligada ao Paquistão: https://archive.is/IChXu.
A Lusa Verifica encontrou o mesmo vídeo em contas associadas no Instagram (https://archive.ph/wh008) e no Tiktok (https://ghostarchive.org/archive/CHko2), nas quais, em várias respostas, os autores dizem tratar-se de uma criança paquistanesa de nome Abubakar e não fazem qualquer referência a Gaza.
Pesquisas adicionais permitiram confirmar essa identidade bem como a UCIN onde a criança está a ser tratada no Paquistão, no Hospital Infantil de Timergara, onde a equipa tem partilhado o caso e atualizações diárias no Facebook (https://archive.is/DXEFT) e no Youtube: https://archive.ph/Wjdw2.
Acresce que num dos vídeos partilhados na página de Youtube de um dos médicos é possível encontrar o mesmo local e os mesmos equipamentos que surgem no vídeo que está a ser falsamente atribuído a uma criança de Gaza: https://archive.is/CHdsh.

Contraditório

A Lusa Verifica conseguiu contactar esse pediatra, Ilyas Khan, que assegura que “a alegação de que o vídeo mostra uma criança de Gaza é incorreta e não reflete os factos”, dado que “aquela criança está atualmente internada na unidade de cuidados intensivos neonatais de um hospital no Paquistão”, informação também confirmada pela conta oficial de e-mail da unidade de saúde.
A página do Facebook que divulgou o vídeo também confirmou à Lusa que o bebé “não é de Gaza, é do Paquistão, chama-se Abubakar” e está a ser tratado naquela UCIN paquistanesa devido a vários “problemas de saúde agravados pela ignorância dos pais”.
Por seu lado, a analista Helena Ferro Gouveia respondeu que reproduziu informação de “um post de um jornalista alemão do jornal Bild” e que “a informação também foi validada pelo Grok.” No entanto, não forneceu qualquer link, mas admite que o jornalista “pode ter-se enganado”. “A acreditar no que vemos diariamente de mentira e manipulação na imprensa portuguesa e no viés anti-semita admito que sim, que possa ter havido um erro da minha fonte primária.”
Na respostas escritas enviadas à Lusa Verifica, a analista recomenda um artigo de David Collier sobre a foto de Muhammad al-Matouq ao colo da mãe, que o jornalista inglês diz não ser a face da fome, mas “o rosto de uma criança clinicamente vulnerável cuja situação trágica foi raptada e transformada em arma”: https://archive.ph/3MVFr e https://archive.ph/c4RwR.
Helena Ferro Gouveia sugere ainda que se “investigue o fotógrafo” porque “tem jihad no nome, o que é bastante sugestivo no contexto do Médio Oriente, trabalha para a agência turca Anadolu e a Turquia (...) é inimiga de Israel e tudo fará para alimentar o ódio a Israel.”

Avaliação Lusa Verifica: Falso

Os alertas para a crise humanitária em Gaza, incluindo para a “fome generalizada”, são reais e têm sido repetidos diariamente por dezenas de ONG e instituições internacionais (https://archive.ph/bePw5), incluindo pelas Nações Unidas (https://archive.ph/S2REC), mas circulam diversas imagens e narrativas falsas.
Há imagens verdadeiras de crianças doentes e subnutridas que são consideradas falsas por contas pró-Israel e vídeos não relacionados que são difundidos como verdadeiros por contas pró-Palestina, num cenário de desinformação e de utilizadores eventualmente bem intencionados que se deixam enganar por inteligências artificiais pouco credíveis e não gastam uns minutos a verificar, através de pesquisas reversas, antes de partilharem conteúdos enganadores.

 

Luís Galrão